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O Galo e a Periquita: que “flagra”!

                O país inteiro viu e continua vendo (pela internet) as chocantes cenas do flagrante perpetrado por autoridade policial sobre a conduta - à primeira vista efetivamente criminosa - de uma servidora pública que teria recebido R$200,00 para fazer ou deixar de fazer algo em favor de alguém, o que em sentido amplo pode configurar “corrupção”.

                Como “chocantes” se qualificam as cenas, pois mesmo as reveladas a todo o Brasil quando do “mensalão” não tiveram a dramaticidade explícita das agora transmitidas em rede nacional e, com a internet, internacional.

                Diante da TV, muitos brasileiros certamente exaltaram a conduta da autoridade policial e o flagrante por esta operado, retratando o sentimento de um país que, infelizmente, não se cansa de produzir notícias de corrupção e, lastimavelmente, de consequente impunidade.

                No entanto, ainda que no exercício de seu poder – e com o devido respeito a todos os membros da “segurança pública” que nos presta serviço público inestimável – é de se questionar, diante dos Direitos e Garantias Fundamentais Constitucionais, se a referida ação foi ou não constitucional, ainda que como anunciado na reportagem, órgãos de correição e o Poder Judiciário já tenham se manifestado sobre o ocorrido, favoravelmente à autoridade policial.

                Respeitando-se opiniões contrárias (e que não devem ser poucas), a conduta, ainda que legal, violou direitos fundamentais da servidora, em razão de uma, dentre algumas, até mesmo simples questão: havia outros meios de se atingir o objetivo que ali se pretendia (localizar o dinheiro e realizar o flagrante).

                O ocorrido representa claramente um conflito de direitos fundamentais, os quais, a grosso modo, retratam interesses. No caso ocorrido, de um lado o interesse público em reprimir uma conduta criminosa e elucidá-la, e, de outro, a intimidade da servidora, ambos interesses, ambos direitos de mesmo nível, constitucionais, fundamentais.

                Uma das técnicas adotadas jurisprudencialmente, em particular pelo STF, para se verificar se uma determinada conduta, sobretudo do Estado (no caso, a autoridade policial) contra um particular, viola ou não um direito fundamental deste último (no caso, a servidora), é a “ponderação de valores”, desenvolvida em um caso concreto (que efetivamente tenha ocorrido) com a incidência do princípio da “proporcionalidade”, o qual é aplicado em três “etapas”. Caso uma das etapas não seja devidamente satisfeita, tem-se por inconstitucional o ato, por violação de direito fundamental.

                Na primeira etapa analisa-se a “adequação” da medida, do ato, ou seja, se ele pode alcançar seu objetivo. No caso, como visto, a medida (arrancar à força a calça da servidora) atingiu seu objetivo (localizar o dinheiro), podendo-se dizer que foi adequada.

                Na segunda etapa verifica-se a “exigibilidade” da medida, consistindo na comparação entre os meios à disposição do agente (no caso a autoridade), de modo a se adotar aquele que possa alcançar a finalidade pretendida (no caso, encontrar o dinheiro e “dar” o flagrante), porém do modo menos prejudicial ao indivíduo (no caso, a servidora).

                Em havendo vários meios com diferentes consequências possíveis, mas todos podendo atingir o objetivo (adequação), a adoção do meio que cause maior prejuízo acaba por violar um direito fundamental do indivíduo.

                E é justamente já nesta etapa que a conduta se mostrou inconstitucional. Atentando-se para a transmissão do ocorrido é possível primeiro ouvir os gritos (que realmente parecem sinceros, de desespero) da servidora pedindo para que fosse revistada por policial feminina, a qual chegou instantes depois.

                Sendo que havia policial feminina, o flagrante poderia ter ocorrido normalmente com o apoio desta e de mais algumas que fossem solicitadas caso houvesse resistência (a qual talvez não tivesse ocorrido se não fossem os vários homens e a câmera) por parte da servidora, e talvez até mesmo – como foi – na presença de apenas um homem, a autoridade policial para dar-lhe o flagrante.

                Não eram necessários todos aqueles agentes e a câmera, pois vigora no Direito, especificamente administrativo, o princípio de que o ato do agente público (no caso, policial) goza do atributo da “fé pública”, como sendo presumivelmente verdadeiro, até que se prove o contrário. Assim, ainda que tivessem estado presentes dois ou poucos mais agentes femininos, a “fé pública” seria invocada, além de que várias seriam as testemunhas do flagrante, evitando-se possível alegação futura da servidora de que teria tido seus direitos violados.

                Não sendo devidamente observada já esta segunda etapa, nem mesmo é preciso analisar-se a terceira (proporcionalidade em sentido estrito e a razoabilidade da medida), vez que o respeito a uma é condição para a análise da outra.

                Além da inconstitucionalidade revelada, não se pode esquecer do prejuízo moral pelo qual a servidora está passando, intensificado com a divulgação das imagens na íntegra na internet, sem o devido disfarce aplicado pelas emissoras de televisão nas partes íntimas daquela.

                Por fim, não se quer com esta análise – que se pretende estritamente técnica – acobertar crimes como o que parece ter sido praticado pela servidora, porém, ou se limita limites, ou rumamos ao caos.

Fernando Batistuzo Gurgel Martins é mestre em Direito Constitucional, Especialista em Direito Processual Civil e em Direito Civil, Professor Universitário, Advogado e Palestrante. E-mail para contato: batistuzo@ig.com.br / Blog: www.professorumaduvida.blogspot.com